Victória Gabriela Natalini
O último Natal, de 2017, foi especial. Passei com minha mãe Daiane. Levei comigo a Safira, minha filhinha de pouco mais de um ano. Há três eu não tinha uma festa em família, desde que entrei para a casa de acolhimento. Foi estranho não estar com a minha mãe esse tempo, sabe? Até agora não entendo o que aconteceu para a gente ficar separada. Eu sou a primeira filha dela e, apesar de todo o trabalho que dei, a gente sempre foi muito apegada.
Sei que não sou santa. Com 13 anos, me envolvi com um menino complicado da favela. Ele sumiu uns tempos e quando soube que eu estava namorando outro cara, disse que queria me matar. Minha mãe foi tirar satisfação com a família dele e tudo ficou confuso.
Minha mãe também vivia um momento ruim com o ex-marido dela, que bebia e tinha sofrido um acidente. Também tinha acabado de ganhar a segunda filha que teve com ele, a Sara. A outra, Nara, estava com três anos e moravam com a gente. Era uma família tranquila.
Minha chegada na casa de acolhimento, num serviço de proteção, foi um susto. Um parente da família que é padre tinha falado para a minha mãe me levar lá para eu ficar longe dessa confusão com aquele meu ex-namorado. Ela achava que eu iria só passar um tempo lá, na proteção. Tinha certeza de que eu ia voltar pra casa quando eu estivesse com a cabeça melhor e, ela, mais estabilizada. Mas não. Quando foi me buscar, disseram que meu caso já tinha automaticamente ido para o Fórum e que ela não era mais a minha mãe.
Sou de Minas Gerais, Poços de Caldas, e tenho outros dois irmãos, de outro relacionamento da minha mãe. Mas eles ficaram com o padrasto de lá. Vim para São Paulo quando ela se casou de novo. Assim que cheguei, fui chamada de “Patricinha da favela”. Me achavam metida, eu estudava em escola particular, era arrumadinha, tinha tudo o que queria e era muito quieta. Foi quando esse meu primeiro namorado apareceu é que eu desandei. Então acabei lá no abrigo.
Ela ia me visitar. Mas trabalhava seis dias da semana como faxineira e atravessava a cidade para me ver. Era longe e tinha as meninas também. De vez em quanto, eu mentia para o abrigo e ia escondida na casa dela. A gente não entendia porque eu não podia passar os fins-de-semana juntas. Despois, descobrimos que o juiz que cuidou do meu caso disse que minha mãe era louca, que não podia mais me criar, que a casa dela era ruim, que tinha droga na minha rua. Ah, acho que a Justiça não entende a vida na favela. Eu nunca passei necessidade nem acho que me faltou amor.
O primeiro acolhimento de religiosos católicos onde fiquei era misto, com meninas e meninos. Minha mãe, que me conhece, pediu para a missionária me dar anticoncepcional para que a história dela não se repetisse. Ela me teve com 13 anos, sabe? Mas me proibiram de tomar o remédio. Disseram que isso era incentivar o aborto. Então, com 16 anos, eu engravidei do namorado que tive lá dentro do acolhimento. Aconteceu.
No meu sexto mês de gravidez eu conheci o projeto Âncora. O pai da minha filha já tinha me largado. Ele fez 18 anos e saiu do abrigo. Eu, de barrigão, encontrava com ele na escola quando passava na minha frente com outras meninas. Eu contei tudo isso e expliquei toda a minha vida para a educadora Luara. Ela, então, foi conhecer minha mãe e entender o que estava acontecendo.
Nessa época, minha mãe já tinha mudado de casa e de bairro. Fez reforma para ter um quarto para mim. Ela também se separou daquele padrasto que bebia e as meninas foram morar com a avó. Estava tudo mudando. Ainda assim, eu não podia ficar com ela. Nem me acompanhar no parto deixaram! Isso me deixou chateada.
A assistente social do abrigo é que foi comigo. Ela ficou muito minha amiga, sabe? Eu mudei de acolhimento, fui para uma casa lar da mesma instituição e ela também foi trabalhar lá. De tão próximas, convidei ela pra ser madrinha da minha filha. A gente ia bastante para a casa dela nos fins de semana. Às vezes eu ia, às vezes não. Mas com o tempo a relação dela com a minha menina foi me incomodando. Era parecia mais mãe do que eu. E na casa da avó, a minha mãe de verdade mesmo, eu não podia ir. Eu falei para a educadora do Âncora e acho que isso fez mudar as coisas.
O Âncora me ajudou a entender essa vida nova que eu tenho ao lado da Safira. Ela está agora com 1 ano e 3 meses e eu mudei muito. É outra coisa ser mãe e eu vou caindo na real, de um jeito bom. Sair para os cursos e palestras, aprender sobre mercado de trabalho e administração de dinheiro, passear com o pessoal de todo o projeto me fez bem. Com a bolsa do projeto comprei tudo para a minha filha. O que eu ganhei no meu primeiro trabalho temporário numa loja também gastei com ela. Eu tirei meus documentos sozinha, voltei a estudar e estou no segundo ano do ensino médio.
Confesso que não vejo a hora de sair dessa casa lar onde estou vivendo. Tem uns profissionais que não acreditam em mim. Desculpa falar, mas não gosto do jeito deles. Uma vez bastou eu colocar um piercing para ameaçarem dar minha filha em adoção. Me sinto vigiada, sabe? Mas tô levando. Levo minha minha menina na creche e cuido dela muito bem. Ela tá gordinha, uma graça.
Agora posso e tento ir quase todo final de semana na minha mãe. Além do quarto para mim, tem a caminha da Safira. Não moramos bem ainda, mas é assim a vida. Minha mãe agora tá com um marido bom e teve outra filha, que tá com um mês. A Antonelli vai ser amiga da minha Safira.
Minha mãe diz para eu não cometer os erros dela. Eu tô namorando um rapaz legal, tranquilo. Quero arrumar um emprego logo. Tomo anticoncepcional injetável todo mês. Já pensei em fazer faculdade Direito mas acho que antes vou fazer curso de cabeleireira. Até o próximo Natal, tudo vai melhorar. E eu tenho certeza que vai ser ainda melhor do que o anterior. Certeza.
“A Justiça foi injusta”
Daiane Oliveira, 33 anos, auxiliar de limpeza, mãe da Victória
“Sou uma pessoa simples, tenho só até sexta série, mas sei que a Justiça não deveria ter sido tão injusta comigo e com a Victória. A gente precisava de ajuda naquele momento difícil e eu achava que naquele lar religioso ela poderia ficar por um tempo até as coisas se estabilizarem. Perdi a guarda da minha filha por decisão de um juiz não queria me escutar e de assistentes sociais que só vinham para me interrogar. Isso não é certo, não. E mais injusto ainda foi a Victória ter ficado grávida quando estava nas mãos dessa Justiça. Sou honesta, passo apertos, mas não precisava ter sido desse jeito.”