José Guilherme del Santo Graceis
Em todo este tempo, José foi adotado apenas uma vez, junto com sua irmã, mas escolheu não continuar com os pais adotivos por não ter se sentido em casa. A irmã seguiu com a adoção e os dois nunca mais se viram. Após a ida para o primeiro abrigo, José não teve mais contato com a mãe. “O que sabemos, pela leitura do processo, é que a sua mãe tinha algum tipo deficiência intelectual e, acredito, que ainda hoje ela more na rua”, conta a educadora social que acompanhou José no projeto Âncora, Luara Assis Brasil Almeida.
Duas tias paternas aparecem por vezes no início da trajetória do adolescente pelos SAICAS, mas há anos o contato foi rompido. “Quando pegamos o caso, a intenção era tentar a reaproximação com a família, mas tivemos muitos entraves com a tia que, apesar de se mostrar aberta, disse não ter condições de cuidar dele”, diz Luara.
Diagnosticado com deficiência intelectual de grau leve, José Guilherme vive hoje em uma Residência Inclusiva e pouco se lembra sobre o seu passado e a família. Suas memórias muitas vezes se misturam com seus anseios. “Podemos atribuir o discurso de José ao rompimento brusco dos laços afetivos, ele muitas vezes expressa o que gostaria de ter vivido, mas não pôde”, esclarece Claudinei Alves de Souza, psicólogo responsável pela Residência Inclusiva Santo Amaro.
Além disso, o profissional ressalta que para compreender as falas do adolescente, é preciso estar atento ao seu contexto histórico e social. “Ao analisarmos o comprometimento da comunicação verbal de José, veremos que suas relações interpessoais são prejudicadas. Na busca por algo que deseja expressar, muitas vezes a ansiedade o toma por completo e as informações chegam desfragmentadas ao receptor. Parecendo assim, sem sentido. Por isso, se faz necessário compreender a história, os rompimentos que foram acontecendo ao longo da sua vida, os traumas que viveu, assim como as perdas significativas e as limitações cognitivas que se apresentam”, diz.
Como a maioria dos adolescentes que cresceram na periferia, José Guilherme é fã de funk ostentação e levou pra vida muito do que ouve nas músicas: quer ter carro, moto e casa com piscina. Mas quer também ter uma família. “Eu queria arrumar uma mulher e adotar um filhinho. Fazer não, fazer é ruim. Prefiro adotar!”.
Hoje meu sonho é tirar carta de habilitação. Faculdade eu não quero fazer, sou muito ruim na sala de aula. Sinto falta da escola, mas vou ficar burro mesmo. Sonho em comprar um carro, um tablet, um rádio e um videogame. Eu também queria, mano, ter família de novo. Ficar assim, só passando de abrigo em abrigo é ruim. Desde que o Conselho Tutelar me encontrou em situação de rua com a minha mãe e irmã, fui encaminhado para o primeiro dos cinco SAICAS pelos quais passei e nunca mais saí.
Bom era quando eu morava com a minha mãe. Ajudava limpando a casa, brincava de pega-pega, de esconde-esconde. Era lá na Bahia, a gente vivia com a minha tia. Cê é louco, eu queria voltar, mas ela perdeu a minha guarda e nunca mais nos vimos. Eu sumi no mundo.
Com a primeira família era muito chato, morávamos em prédios pequenos, então não podia ter gato, não podia ter papagaio, tudo era proibido. Na outra casa, a tia me mandava passar pano, lavar louça, varrer o chão. Ficava pegando no meu pé, não gosto que ninguém pegue no pé. Essa família também adotou a minha irmã, ela deu certo, está com eles até hoje. Eu preferia ter um irmão, mulher é ruim porque te deixa na mão. Minha irmã, se fosse homem, estaria aqui junto comigo.
Hoje eu moro na Residência Inclusiva, aqui só vivem adultos com algum tipo de deficiência. Não é como no SAICA em que eu morava. É proibido sair sozinho, o tio pega na mãozinha pra andar com a gente, parece que está levando um bebê. Por isso eu prefiro ficar na minha, aqui dentro mesmo. Durmo tarde, passo o dia todo sentado no quintal mexendo no celular, trocando ideia com o Michel e com o Veio.
No antigo abrigo, a tia me entregava a chave do portão e eu podia sair pela quebrada. Tomava sorvete, ia na casa dos moleques. Eu sei de cabeça o busão que pega para ir ao shopping, é o azul. Eu morava com mais crianças, uma delas era o Marcelo. Nós éramos amigos, mas ele gostava de me chamar de pai. Quando eu fui embora o bichinho chorou. Se eu arrumasse uma mulher adotava ele. Lá eu também fui dono de um bar, funcionava na casa de um amigo que morava perto. Vendia coxinha, chocolate, tinha de tudo.
A Luara, do Âncora, me inscreveu nas oficinas do Emprego Apoiado da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). É parte da minha rotina também frequentar as reuniões para aprender sobre trabalho. Eu já trabalhei no Mercado Roldão e na Renner. Ficava repondo os pacotes, colocava as roupas nas caixas…Era chato. Bom era ficar no “bibis”, vendo as meninas, comer esfiha, tomar sorvete, ninguém pegava no meu pé. Hoje, quando eu compro alguma coisa, preciso trazer a notinha para as tias prestarem contas, é chato.
Podia trampar num lava rápido, eu já fui dono de um. Minha tia tinha uma casa grande e me deixou montar o lava rápido lá dentro. Era suave!
Não tenho muitas lembranças da minha família. Além dessa irmã que foi adotada, acho que tem uma que está com a minha tia, outra vive em abrigo, e outra sumiu no mundo. Se não me engano, também tenho um irmão. Eu tive uma avó, mas ela teve câncer na barriga e morreu. Estava no abrigo quando minha mãe ligou e contou essa fita aí, eu fiquei mal.
Da minha mãe me lembro muito pouco, mas ela era da hora. Gordinha. Me dava dinheiro, me amava a bichinha. Lembro de quando a gente se viu no fórum, ela não queria deixar que eu fosse embora. Chorei muito. Hoje é difícil a gente se ver, mas uma vez liguei pra ela e falei que ia lá, que ia trabalhar, que já sei pegar busão, que ia chegar de fininho. Ela chorou, mano.
A casa da minha mãe fica bem ao lado da minha. É grandona, eu que montei. Falei: “vou aumentar a casa, não vai mais ficar pequenininha não”. Mandei o cara construir em um mês, fiz uma piscina igual a que tinha no abrigo. Botei piso, tem cama de casal. Ela está lá agora, feliz.
Lembro das minhas tias que sempre me visitavam no abrigo, mas aqui não dá pra elas virem porque é muito longe. Eu queria ter contato, mas acho que elas não têm celular e nem o meu número. Essas tias são irmãs do meu pai, o Piri. Temos a mesma cara e sou folgado feito ele. Não tenho medo de morrer, não, puxei o papai. Quero voltar para a casa que ele comprou para eu morar sozinho. Tenho a chave e tudo aqui. Lá eu fazia arroz, feijão, bolo. Comprei o gás, as panelinhas que estava sem, um Play 2. Ele me ensinou a dirigir também, ficávamos no carro ouvindo música.
Seria bom voltar a morar sozinho por vários motivos, mas um deles é que recentemente eu conheci uma menina no campo onde jogo futebol uma vez por semana. Ela pediu pra ir na Residência, mas não tive coragem de levar. Imagina a vergonha se os outros moradores ficam mexendo com ela? Se eu morasse só, aí levava ela em casa, fazia um bolo, aquele lanchinho da hora, a gente ia assistir um filminho. Depois eu a deixava no ponto de ônibus e já era.
Enquanto eu não posso ir morar em outro lugar, vou passando os dias tentando me distrair.
Já tentei escutar outros estilos, apagar do celular, mas não dá, tá na cabeça. Já fui em vários bailes. Conhece o baile do Pikachu? Já fui. Eu danço um pouquinho também. Tive uns 10 celulares. O primeiro eu comprei quando caiu o dinheiro do lava rápido na conta. No outro dia comprei um carro e uma moto, tá lá na rua da minha casa, ninguém mexe. É uma Range Rover.