MV na voz, salve! MV * já foi o rei da boca, empunhou fuzil e viu amigos tombarem no tráfico. Hoje ressignifica o que viveu em letras de rap que falam do seu passado e do presente, mas principalmente abrem os caminhos para seu futuro

deslize para ler

MV

MV gosta de falar de livros, rap e mulheres. Exatamente nessa ordem. No quarto que compartilha com outros três abrigados, chama atenção a estante com obras de autores nacionais e o tocador de CDs - únicos pedidos do adolescente à gerente quando chegou na casa de acolhimento. É o sexto ou sétimo abrigo por onde passou nos últimos dois anos. De todos os outros ele fugiu. O garoto criado com a avó no interior da Bahia que aos 13 anos virou rei do tráfico agora gosta de mostrar seu caderno com os versos que leva às batalhas de rap às quartas-feiras. "Eu não preciso andar com escopeta porque minha arma é o papel e a caneta."
Depoimento à Flávia Martinelli. Fotos por Marlene Bergamo.

*Nome omitido para preservar a identidade do adolescente.

Para contar a minha história posso usar as letras do meu rap? Sério? Então, já gostei de falar da minha vida. Porque eu vou ser sincero: o que eu mais gosto de fazer é escrever meus versos. Em segundo lugar, é ler. E namorar também. Então vou começar pelo primeiro livro que eu li de verdade: foi Quarto de despejo: diário de uma favelada, da escritora Maria Carolina de Jesus. Me levantou pra vida, deu aquela chacoalhada. Mas isso foi recente.

Na escola eu tinha vergonha de contar para a professora que eu não sabia ler nem escrever. Vi menino menor do que eu mandando bem enquanto eu ficava quieto pra não pagar mico. A sorte é que em casa, no meu caderno, eu metia o louco. Fazia tudo errado mesmo, puxando letra que eu nem sabia o que era. E nisso fui aprendendo. A Bíblia também ajudou. Pegava os textos pra copiar. E assim foi… Um livro que gostei muito foi Capitães de Areia, do Jorge Amado, que é baiano que nem eu. Mas ele é de Itabuna, eu nasci em Paudarco. Fiquei lá com a minha avó até os 13 anos de idade.

Sou o mais velho de seis irmãos. Para a minha mãe fui apresentado com 10 anos. Meu pai eu vi antes, aos 7. Mas, né? Só nos encontramos duas vezes. A segunda foi no velório dele. Foram 15 tiros que ele levou.

Não quero que isso aconteça comigo. Tô esperto. Tem um verso meu que resume esse pensamento: ‘Eu não preciso andar com escopeta porque minha arma é o papel e a caneta’.

No rap eu expresso o que vivi. E foi muita, muita coisa: droga, tráfico, roubo, pagamento de polícia para eu não ir preso ou morrer, cobrança de quem deve ou paga de ramelão ou vacilão da quebrada… Na Bahia, com menos de 12 anos eu já era visto como um rei na boca. Fui o mais respeitado, tinham medo de mim. Qualquer folgadão que mexia com os moleques eu ia lá e defendia. Em São Paulo também fui do movimento. Tinha tênis caro e até foto com fuzil para pegar mulher. Agora eu tenho versos.

Mando os áudios do meu rap para a minha avó lá na Bahia e sei que ela se orgulha e torce por mim, sabe que estou mudando. Ela ficou sem saída quando me mandou viver com a minha mãe em São Paulo. Dizia que era assim ou me veria num caixão ou preso. Falava que eu iria me matar ou ser morto e ponto final. E é verdade mesmo.

Já a minha mãe guarda mágoa minha e eu entendo também. Foi muita treta quando apareci para morar com ela e seu companheiro na favela de São Domingos. Não me dei bem com meu padrasto. Nessa época, ele era traficante. Hoje é da igreja evangélica e tal. Mas nossa relação sempre foi complicada. Ele me batia.

Consegui ficar só quatro meses com eles.

Não dava para estar no jantar da família com uma pistola na cintura. A vida no tráfico, repassando droga, era ostentação. Eu me sentia poderoso. Mas depois de um tempo ninguém mais me quis; nem a boca nem a minha mãe.

Sozinho, procurei o conselho tutelar para morar em abrigos.

Passei por umas seis, sete casas de acolhimento diferentes. Entrava nelas mas continuava fazendo as coisas erradas, os furtos, as paradinhas e tal. E além de eu não me adaptar às regras dos abrigos, sempre tinha briga, ameaça, agressão, confusão. Ixi… muita porrada. Aí eu fugia mesmo. Lembro que uma vez passei 20 dias andando na rua sem rumo por aí, carregando uma arma de brinquedo para roubar loja. Num verso de rap eu explico: ‘hoje faz sentido aquele ditado/ melhor andar sozinho do que mal acompanhado’.

E teve droga, né? Antes dos 15 anos cheguei a ficar internado numa clínica por causa da cocaína. Fugi também. Até que uma juíza me deu a letra: aquela seria a última vez que eu faria serviço voluntário para pagar meus erros. Na próxima era a Febem [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, hoje chamada de Fundação Casa – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente]. Cumpri minhas tarefas em liberdade assistida e nesse tempo um amigo da minha idade morreu baleado.

Na real, era o quinto moleque que eu via tombar. Parei para pensar a vida. E por sorte encontrei um abrigo que me deu apoio, que me compreendeu. Fez diferença.

Quando entrei aqui [na Casa de Acolhimento Revive 2, no Alto de Pinheiros, em São Paulo], descobri que meu apelido era ‘Vitor, o Terrorista’. Fiquei na minha, só pedi, na moral, na maior humildade, uma estante para ter meus livros no quarto e um som do lado da cama. Fui atendido, foi da hora! No rádio, passei a ouvir um pastor evangélico que falava de Jesus e isso que me ajudou a largar as drogas e os remédios que também me deixavam bem louco.

Nessa época eu gostava de funk mas conheci o rap gospel e fui aprender dança de rua. Voltei a estudar. Fui pra escola com a maior disposição. Em vez de usar droga eu queria ler livro e aprender a escrever verso. Descolei uma namorada legal, fico de boas com ela. Agora estou na oitava série no curso noturno para jovens adultos. Tem um ano e meio que estou limpo e há três meses fui selecionado para o projeto Âncora do Travessia. Tenho outros sete pela frente. Maior honra, firmeza mesmo.

Teve uma coisa engraçada que aconteceu logo que conheci o Francisco, o meu educador no Travessia. Ele me levou para fazer um curso de cabeleireiro e eu estranhei. Opa, como assim, né? Mas foi uma mega porta que ele me abriu. É uma opção de trabalho que gostei. Já sei fazer corte, maquiagem, cuidar de pele. É legal e tem um monte de mulher (risos). Eu tô gostando de pensar na vida que vou ter depois de sair do abrigo, viu?

O dinheiro da bolsa eu guardo numa poupança para ter uma reserva quando completar 18 anos, em maio de 2018. É um alívio porque eu ficava quebrando a cabeça sem saber onde arrumar dinheiro de um jeito correto. Essa graninha vai ajudar muito e logo arrumo emprego, tenho certeza.

Meu sonho é trabalhar com música mas o Francisco do Âncora tem me acompanhado na distribuição de currículo em lojas de roupa e mecânicas, já que eu fiz uns bicos disso. Eu ainda estou de olho na oportunidade de um trabalho temporário que faço, num clube de tênis, virar fixo.

Quando me perguntam sobre o futuro, penso também em fazer pedagogia e serviço social para trabalhar como menores infratores da Fundação Casa, aquela que eu escapei. Eu tenho uma visão para passar para eles. Eu vivi aquilo que eles vivem. Ninguém me contou. Eu vi, ouvi, testemunhei e estive onde estavam. Mas eu sei que existe um caminho, sabe? Pela primeira vez eu vejo isso e queria dar essa letra.

Eu tenho plantado coisas boas e já recebi recompensas. Quando contei que quero investir no meu rap, surgiu um professor de música para me dar aula e descobri que registrar minhas letras não é caro nem complicado. Fiquei mega feliz. E outro dia, na batalha de rap, eu fiquei na semi-final da rapaziada. É bem louco isso, ser aplaudido por me expressar e desabafar a minha verdade. Ah, qual é a minha verdade? Ah, é saber que tenho seguir meu caminho com muita atenção. Ou melhor, como digo no meu rap: ‘Levo minha vida no meio da malandragem / Derrubo montanhas, derrubo muralhas / Visto a armadura que é a palavra / Eu uso a minha fé que se torna a minha espada.’ É isso aí.

MV na voz. É nóis. Salve!

Nas ruas e nas praças, só vejo fumaça
Enquanto eu escrevo sobre um mundo sem graça.
As pedras não falam mas quebram as vidraças
Jesus estilo Rap e o diabo de terno e gravata.
E o governo anda de Sonata
Enquanto Dona Valmira sempre tá na caminhada.
Eu não aceito ver essa parada
Qual será o futuro dessa nova molecada?
Eu tenho meu lado bom mas vivo meu lado mal
Porque normal pra eles hoje é viver igual.
Levo minha vida no meio da malandragem
Derrubo montanhas, derrubo muralhas.
Visto a armadura que é a palavra
Eu uso a minha fé que se torna a minha espada.
Não quero ser mais um que anda com as quadrada
Que fuma um baseado pra agradar a rapaziada.

Eu não preciso andar com escopeta, porque minha arma é o papel e a caneta
Eu não preciso te jogar granada, porque na tua mente eu lanço minhas palavras.
O mundo é traíra e cheio de armadilhas
Com palavras lindas ele vem e te extermina.
Pra que tu vai roubar? Pra que tu vai matar?
Um dia tu vai morrer e nada tu vai levar.
Cada verso que eu escrevo, eu leio e escrevo
Muita gente quer sonhar mas vive um pesadelo.

Muitos menor se foi e cê não sabe porque
Muitas coisas que acontecem que não mostra na Tv
Ontem eu sai de casa e bateu a maior revolta
Os policia me pararam querendo me forjar com droga.
Tu escuta meu som e fala que te incomoda
Não vim te criticar porque isso não é moda
Isso é poesia por cima da melodia
Que clareia tua mente igual ao clarear do dia

Cada verso que eu sinto com certeza faz sentido
Mas muito viram as costas igual viraram para Cristo.
Eu não sou santo, eu não sou perfeito
Eu sou um ser humano e eu tenho meus defeitos.
Já passei pelo mar, já passei pelo deserto
Tentaram me derrubar mas eu fui mais esperto.
Me humilharam eu não liguei, eu fui além
E graças a Deus eu não sou melhor do que ninguém.
Compus essa letra tão de repente
Tenho certeza que você não vai tirar ela da mente
Eu sou um poeta, a rima é minha letra, o papel é o escudo e a espada é a caneta.

Francisco Castro Educador Social Fundação Projeto Travessia

“É impressionante a diferença entre a descrição do MV nos processos judiciais e o garoto doce e sensível que conheci no Âncora.”