Os horizontes de Bruna Bruna * morou na rua por quase toda sua infância. Aprendeu a ler só aos 11 anos e hoje alimenta dois objetivos: fazer a faculdade de Letras e reencontrar a mãe que viu pela última vez na cracolândia

deslize para ler

Bruna

Até os 11 anos a caixa de loja de eletrônicos Bruna* não sabia ler. Morava na rua com a mãe e a irmã. Passou pela casa da avô, depois foi para um abrigo. Hoje, aos 19, planeja a entrada na faculdade e mora numa república. “É um processo. Eu só sabia dizer por favor e obrigada, só. Mais nada. Não sabia ser simpática. Era na lata. Ainda estou descobrindo as coisas mas hoje sei ter uma conversa com a minha gerente no trabalho, pá. Minha mãe teria orgulho de ver que a liberdade que eu conquistei.”
Depoimento à Flávia Martinelli. Fotos por Christian Braga.

*Sobrenome omitido a pedido da adolescente.

Tenho uma planilha que me diz quando posso comprar danoninho. Eu mesma faço essa tabela. É bem diferente da época em que eu ia buscar esse iogurte que eu gostava, daqueles de colocar as bolinhas em cima, nos fundos de um mercado no meio da madrugada. Eu ia lá com a minha irmã pegar o que jogavam fora enquanto minha mãe ia usar droga. A gente morava na rua. Tinha iogurte bom, tinha estragado também. Se aparecia esse que a gente gostava, comia do jeito que estava mesmo. Vou te contar: é bem mais da hora ter uma tabela que mostra quando posso comprar danoninho com o meu salário.

Hoje sou caixa de uma loja de material de escritório. Ganho R$ 700 como jovem-aprendiz e tenho contrato para um ano. Sobram uns R$ 400 para eu gastar. Foi a educadora Fabiana do Travessia quem me ensinou a organizar tudo. Nos conhecemos quando eu estava com 16 anos e morava num abrigo do Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA). Fui selecionada para participar do projeto Âncora, que dá suporte para quem está prestes a ficar maior de idade e tem que sair da casa de acolhimento para enfrentar o mundo.

A planilha que aprendi a fazer têm os gastos fixos, como a conta de energia elétrica da república da que prefeitura onde eu moro com duas amigas, que dá uns R$ 60, e os gastos que mudam todo mês; tipo absorvente, doce, xampu e essas besteiras como danoninho… Ah, até poupança tá na planilha. Tudo planejado. Precisa, né? Quero fazer faculdade.

Já pensei em prestar vestibular para Serviço Social mas também para Letras – porque gosto muito de português, sei o básico de espanhol e estou aprendendo italiano por whatsapp com uma amiga que foi adotada na Itália. Meu sonho é viajar e conhecer o mundo inteiro. Penso em estudar em outro país, fazer intercâmbio. Tô correndo atrás. O Enem já fiz no ano passado para testar como é. Estou no terceiro ano, vamos ver.

Ainda tenho desafios porque, sabe, eu só aprendi a ler com 11 anos. Foi quando minha mãe foi presa e eu tive que ir morar com uma pessoa que dizia ser a minha avó.

Ela era mesmo a minha avó! Mas eu falo assim porque quando ela apareceu eu me assustei, saí correndo. Achei que era alguém querendo sequestrar a mim e a minha irmã. Levou mais de um mês para eu acreditar que minha avó era a minha avó. Foi um impacto, né? Morar na casa dela e ir pra escola: tudo junto. Na rua não tinha rotina, era só pensar em o que comer e onde dormir com segurança de noite. Por que, sabe? Tem gente que quer tacar fogo na gente enquanto tá dormindo. Tirando isso você vive. Mas naquela época eu via as palavras como se fossem desenhos. De um dia pro outro estava naquela casa e cheguei na escola morrendo de vergonha porque eu era grande numa sala cheia de crianças pequenininhas.

Mas minha intenção era ler, eu tinha muita curiosidade, me esforçava bastante. Mesmo quando minha irmã sumia da casa da minha avó e dava uns perdidos, eu podia até ter passado a noite na rua procurando ela mas ia direto pra escola no dia seguinte. Com a roupa do corpo mesmo, sem dormir. Eu não faltava de jeito nenhum no colégio.

Tem muita coisa que o estudo traz… Família também. Mas é uma adaptação, né? Tive que aprender coisas que as pessoas sabem desde pequenas. Coisas básicas de educação. Por exemplo, eu só sabia dizer por favor e obrigada, só. Mais nada. Não sabia ser simpática. Era na lata. Ainda estou descobrindo as coisas mas hoje sei ter uma conversa com a minha gerente, pá. É um processo.

Quando fui pra minha avó, numa favela, achei tudo estranho. Não sabia porque eu estava lá, como cheguei lá, quem era ela nem porque tudo aquilo aconteceu. Até os meus dez anos só existia minha mãe. Fabiana é o nome dela e ela tem uma pinta no rosto e três patinhas de cachorro tatuadas no braço esquerdo. Ela e a minha irmã Stefanie, que é quatro anos mais nova que eu, eram tudo o que eu tinha. A Stefanie hoje tem 15, já fugiu de abrigos muitas vezes e não se adaptou na casa da nossa avó. Eu tento cuidar dela mas é difícil.

Não lembro do meu pai. Dizem que ele se chama Val e está na cadeia vai fazer 17 anos. Queria ter contato, mas ele tá longe, num presídio que nem sei onde é. Tive um irmão mais velho que não conheci. Minha avó diz que foi sequestrado pequenininho, sumiu quando morava com ela. Outro irmão, Gustavo, nasceu na rua, foi adotado. A Jennifer, mais nova, morreu de asma com cinco anos. Eu tinha seis.

Por um tempo, tive meio que ódio da minha mãe, sabe? Passei por muita coisa. Ela é doente, dependente química de crack, foi presa várias vezes. Cheguei a ficar na rua sozinha com a Stefanie. Eu era experiente mas me perdia pelo centro. Minha mãe me achava. Até que um dia a polícia a levou pra cadeia e eu e minha irmã à minha avó.

Para a Stefanie foi mais difícil a vida nova. Depois uns três anos, ela foi para uma casa de acolhimento a pedido da minha avó. Sem ela fiquei triste. Não quis ficar nem deixar Stefanie sozinha. Fui junto para a casa de acolhimento, mesmo sabendo que ia ser difícil voltar. Eu tinha 14 para 15 anos e ela 10 quando fomos abrigadas. Stefanie é muito doidinha, uma peça. A gente briga mas é coisa de irmã.

No abrigo, nem sempre as tias entendem que a gente não tem para onde ir e que aquela é a nossa última opção. Pode parecer que todas que trabalham ali gostam de crianças mas nem sempre assim. Tinha uma funcionária que batia. Não comeu? Batia. Eu ficava só olhando até o dia que ela quis me bater com um daqueles rolos de macarrão. Fiquei revoltada e contei tudo pra gerente. Eu sabia que era uma acusação forte. E eles confirmaram. Essa tia foi demitida por justa causa. Tirando isso, passei a gostar de lá. Por isso sofri quando tive que mudar de abrigo depois, dos meus 16 para os 17 anos, porque essa casa de acolhimento fechou. Foi quando conheci a educadora Fabiana. Além de ter o mesmo nome da minha mãe, ela é como uma irmã pra mim.

Fico admirada com a paciência que a Fabiana teve comigo. Eu cheguei nesse abrigo com a cabeça pronta pra encrenca. Queria ficar com as minhas amigas da antiga casa de acolhimento, estava revoltada, sabe? Mas não dava. Ela me explicou. Eu sou fechada, tenho dificuldade para falar em grupo e o projeto promovia encontro com outros abrigados. Fizemos vários jogos e brincadeiras interativos para ficar à vontade. Eu acabei indo até fazer teatro, adorei. Falávamos sobre entrevista de trabalho também, dinheiro. Fizemos um projeto de vida para mim. Fez diferença na minha vida. Os educadores perguntavam o que a gente gostava, não gostava e porque. Lá também conheci a Aline que hoje mora na república comigo.

Para estar na República preciso estar estudando e trabalhando e a Fabiana e o gerente da minha casa de acolhimento, o Damião, me deram a maior força. Já completei um ano assim, levando a vida com minhas próprias pernas, na responsabilidade. Eu faço minha comida, coisa que no abrigo você não pode fazer porque tem funcionária pra tudo e a gente fica mal acostumada. Agora revezo a faxina a cada três semanas com minhas colegas de casa. Gosto de andar de bicicleta e de vez em quando tiro um sábado para fazer um dia de beleza para mim.

Nesse tempo todo, continuei e continuo a visitar a minha avó. Minha irmã já fugiu de abrigos e vira e mexe vou atrás dela. É complicado… Tento buscar minha mãe também, que nunca mais tive mais notícia. Ainda tenho esperança de que ela esteja viva. Mas minha avó diz que não. Prefiro acreditar que vamos nos reencontrar e sei que ela teria orgulho de mim.

Quando você está rua e vê uma pessoa como eu, que sabe que horas são, que sabe que tem um tempo certo para fazer as coisas, acha que isso tira a liberdade de viver. Hoje vejo diferente.

Sou livre para escolher o meu caminho e comer meu danoninho quando me der vontade. Eu acho que isso é ser vencedora, sabe?

Fabiana Magalhães Educadora social

“A Bruna me impressionou pela maturidade, é uma menina fora da curva. Ela viveu muito em pouco tempo. Montamos juntas um planejamento para os próximos passos dela com foco no estudo, no trabalho e na vida financeira. Tenho certeza que com a força de vontade, a garra que ela tem, ela vai longe.”