Testemunhas de um modelo a ser revisitado Além de mudanças no suporte aos abrigados no desafio da maioridade, o Projeto Âncora propõe novos caminhos para avanços das políticas públicas do acolhimento. É preciso repensar as estruturas institucionais

deslize para ler
Fotos Christian Braga.

Foram 24 meses de trabalho, 72 adolescentes assistidos; dois deles cadeirantes, 37 desacolhimentos, reuniões semanais dos profissionais para análises de cada caso, dezenas de conversas com familiares e comunidade, atividades de encaminhamento profissional aos acolhidos, orientação na administração dos recursos das bolsas destinadas aos jovens, oficinas sobre mercado de trabalho e sexualidade, passeios educativos, metodologia de formação horizontal aos educadores, capacitações para equipes técnicas de SAICAS (Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes) e Repúblicas Jovens e muitas transformações na vida dos acolhidos próximos a enfrentar o desafio de completar 18 anos.

O Projeto Âncora – Família e Cidadania não só ofereceu suporte para adolescentes no processo de desacolhimento como promoveu reintegração familiar e comunitária. A partir de sua ação, os profissionais também se qualificaram para fazer análises políticas e técnicas da rede de atendimento e, assim, propor avanços na direção de políticas públicas efetivas. “O Projeto Âncora é a continuidade de conceitos fundamentados na prática da Fundação Projeto Travessia. Temos conhecimento histórico desde 1995 com inúmeras iniciativas que nos qualificam para fazer propostas ao acolhimento institucional”, diz Juvandia Moreira, diretora-presidenta da fundação. “Sabemos da importância de se reestabelecer vínculos a partir do conceito de família”, completa o coordenador e autor do projeto, Clóvis Tadeu Dias.

Toda criança tem braços familiares ou alternativas aos longos acolhimento

Educador social há mais de 20 anos no Travessia, Clóvis se refere ao retorno dos assistidos a diferentes arranjos familiares. Da família tradicional ou monoparental (formada por um dos progenitores), passando pela homoafetiva, comunitária (com os membros adultos que constituem o agregado responsável pela criança), à família convivente (composta de duas ou mais unidades nucleares, parentes ou não, que compartilham rendas e despesas). “O abrigo deve ser algo extraordinário, a última alternativa, e de caráter provisório.”

A coordenadora geral da fundação, Cleuza Rosa da Silva, reafirma o propósito do Âncora: “priorizamos a escuta à criança, à família e o incentivo do adolescente à autonomia.” Não por acaso, educadores elaboraram o genograma dos adolescentes em buscas de vínculos possíveis. Para o desenvolvimento da independência, o Âncora ofereceu oficinas de mercado de trabalho e administração de finanças da bolsa-auxílio, de cerca de R$ 350 reais, aos que estavam prestes da maioridade. Também fez parcerias com empresas do Programa Jovem Aprendiz.

Equipes técnicas não têm amparo institucional para mudar Protocolos ineficazes

O principal problema testemunhado nos SAICAS, no entanto, são gerências técnicas que não assumem de forma efetiva o papel de “guardiães” das crianças e adolescentes, conforme o artigo 92, parágrado 1, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Clóvis pontua que não se tratam de dificuldades de equipamentos específicos, mas da estrutura das políticas públicas de assistência social e judiciária. “Os técnicos não têm amparo institucional para mudar protocolos e modelos viciados. Há carência de infraestrutura. Existem abrigos com funcionários sem pagamento por atrasos nos repasses das verbas do Estado.” Mas o Âncora propõe saídas.

Segundo Clóvis, SAICAS não precisariam de equipe técnica. “Seria mais efetivo contar com número suficiente de educadores sociais preparados, com curso superior e aprofundamento nos conceitos de defesa e garantia de direitos e cidadania”, sugere o coordenador que apesar de ser psicólogo não defende a permanência de um profissional dessa área no acolhimento. “Há adolescentes que não contam ao psicólogo um abuso sexual, por exemplo, mas para outro profissional que participa de seu cotidiano.” Ele acredita que educadores são os profissional mais preparados para fazer relatórios qualificados em caso de enfrentamento judicial. “Um bom relatório move processos, é decisivo. Não deveria ser feito apenas por equipes técnicas.”

Toda criança que entra no abrigo deve ter suporte no dia seguinte para o desacolhimento

Para o Clóvis, é comum encontrar  equipes técnicas em papel de subserviência  ao judiciário; o que provoca estagnação diante de mudanças de cenários familiares. “As audiências concentradas muitas vezes são ameaçadoras para as famílias. Há descaso de defensorias e promotorias.” Pode ser diferente. “O Estado deve rever os objetivos dos abrigos e o papel dos familiares.”

A partir de março de 2018, o Âncora será descontinuado por regras do poder público. “A iniciativa privada, por sua vez, não se sensibiliza por projetos que têm resultados só a médio e longo prazo”, lamenta Cleuza, coordenadora geral do Travessia. Em tempo: o custo per capita por adolescente do Âncora é de pouco mais de R$ 1 mil por mês. No atual modelo prisional, o gasto é de cerca de R$ 2 mil mensais. “Existem erros médicos que matam. Erros sociais também”, conclui Clóvis.

A equipe da Revista Âncora entrou em contato com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo e Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente em busca de autorização para realização de entrevistas com responsáveis pela Comissão Permanente de Políticas Públicas, Proteção Social Especial, SAICAS e Repúblicas Jovens mas não obteve retorno.