Enrique Ramírez Oliveira
O anseio por liberdade é endossado pelos pais que sabem da importância do filho levar uma vida mais ativa. Natacha Ramírez Ruiz, mãe de Enrique, acredita que maior autonomia para o filho, trará qualidade de vida para todos. “Hoje é tudo muito complicado: precisamos pagar táxi, porque o transporte da prefeitura tem uma série de regras, como horário e datas, que muitas vezes impede que usemos o serviço. A falta de adaptação do transporte público inviabiliza o nosso acesso, com isso, um simples passeio acaba sendo adiado. Resumindo, sair de casa hoje é trabalhoso e caro!”, diz.
Apesar de todas as dificuldades a ida para o abrigo estreitou a relação de Enrique com a cidade, antes a rotina não envolvia nenhum tipo de saída. “Houve um período de adaptação, claro, mas também tivemos ganhos. Hoje ele passa com médicos especialistas que antes não conseguíamos acessar; ele fez amigos no abrigo e visitá-los entrou na agenda de programas. O Travessia também promove alguns passeios, como a ida para o Porto de Santos, que ele adorou”, conta.
Natacha lecionou nas escolas municipais de São Paulo durante 25 anos, atualmente aposentada, planeja para 2018 um projeto de vendas de bolsas com uma amiga. “Com a ida do Enrique para a escola, eu terei as tardes livres para fazer coisas que gosto. Já trabalhei bastante, mas ficar parada não é pra mim, não”, garante. O jeito acelerado da mãe de Enrique conversa com a vida atarefada que sempre levou tendo que cuidar do filho, da casa e dos seus gatos.
O ritmo começou a desacelerar quando as mudanças exigidas pelo Conselho Tutelar aproximaram o pai, viabilizaram a contratação de uma cuidadora e exigiram a doação dos animais. “O Enrique e eu éramos muito apegados aos bichinhos, mas antes mesmo da prefeitura vir até aqui eu já planejava doar, o que eles fizeram foi agilizar o processo de vacinação e castração e me ajudar a achar novos donos. Ainda esperei o meu filho voltar do abrigo pra decidir quais ele gostava mais e queria ficar. Foi difícil, mas superar dificuldades é comigo mesmo”, afirma.
Francisco de Oliveira, o pai de Enrique, se aproximou mais da vida do filho depois do abrigo. Além de morar longe e ter uma família, a profissão de MC de rap ocupa bastante espaço em sua agenda. Mas, Francisco garante que planeja uma vida superativa para os dois. “Eu quero dar rolê com meu filho, vou arrumar essa cadeira e sair por aí. Hoje a gente sai e tumultua: não tem rampa, as calçadas são todas ferradas. Mas eu vou dar um jeito, quero mostrar o mundo pro meu filho!”, diz.
A família montou um cronograma de revezamento que envolve a mãe, a cuidadora e o pai, com isso, Francisco tem sido responsável por muitos dos compromissos médicos. Mas também defende que Enrique tenha mais autonomia. “Olho para ele e vejo um guerreiro cheio de capacidade. Meu filho tem o sonho de liberdade e eu incentivo ao máximo para que ele conquiste essa cadeira e possa passear, entrar no elevador sozinho, falar para as pessoas ‘você pode sair da minha frente?’, ele vai ver que o mundo é maravilhoso”, fala.
Aos 10 anos, quando parei de andar, foi bastante assustador. Fiquei preocupado em ver a força ir embora. Mas, ao mesmo tempo, sempre soube que estar vivo era o mais importante. E eu sou inteligente, me adaptei e agora acho normal. Tenho uma doença chamada distrofia muscular de Duchenne, ela é genética e aos poucos tirou quase todos os movimentos. Hoje, apesar de sentir o meu corpo, mexo apenas e, com limitações, as mãos, a cabeça e parte do tronco. Antes do avanço da doença eu conseguia brincar, correr e fazer todas as atividades que sentia vontade. Menos jogar futebol, isso sempre foi contraindicado pelos médicos.
Tenho uma rotina que nunca muda: acordo cedo, tomo café, vou para o banho e aí sento na cadeira e passo o dia vendo vídeos no Youtube e assistindo Netflix.
Ir para o abrigo não foi uma coisa ruim, o espaço era adaptado e pude aprimorar alguns truques para lidar com as minhas limitações, como manobras com o corpo e com as mãos para segurar a comida. Lá também conheci o Mateus e o Gabriel, que se tornaram meus grandes amigos. Os dois são irmãos e nasceram com a mesma doença que eu. Foi bacana fazer amizade com pessoas da mesma idade e com questões parecidas com as minhas. Hoje eles permanecem morando no SAICA, o irmão mais velho já tem 18 anos e poderia sair, mas preferiu ficar com o menor de idade até que possam ir embora juntos. A gente mantém contato pelo celular e pelo Xbox, jogamos online. Acho que fazer amigos foi o mais legal dessa experiência de viver fora de casa.
Também era bom participar das oficinas e atividades do abrigo sobre mercado de trabalho e educação sexual.
Com as conversas, acabei chegando à conclusão de que trabalhar deve ser legal, ter dinheiro é importante. Entreguei meu currículo aqui na igreja do bairro e eles vão ver se conseguem algo pra mim na área de telemarketing. Uma amiga que trabalha em uma fábrica de alimentos também me indicou, lá deve ser demais.
Reformar a casa tá na lista de planos que tenho, vamos adaptá-la e construir rampas para facilitar a minha movimentação. Na lista também está a compra de uma cadeira motorizada e, quem sabe, um carro adaptado. A grana da pensão que meus pais passaram a pagar pra mim depois do acolhimento, tá presa por causa de processos burocráticos chatos. É como se eu ainda estivesse no abrigo, aí o dinheiro fica retido e eu não consigo sacar. Mas assim que sair vou conseguir.
Outra coisa legal do abrigo foi a psicóloga, desde que fui pra lá tenho terapia uma vez por semana. Me tornei uma pessoa mais calma. No início eu ficava muito bravo com as outras crianças que moravam no SAICA, eles queriam pegar as minhas coisas e me bater. Era bastante irritante. Com as sessões, eu aprendi a ser mais tranquilo e menos ansioso. Mesmo com os meus pais. Até o meu vício em tecnologia diminuiu: acabava a bateria do celular? Eu ia pro Ipad. Acabava a do Ipad? Eu corria para o celular.
É ótimo também sair de casa para ir ao consultório, assim como para ir ao banco e ao médico. Porque são saídas que eu não fazia antes do acolhimento, sempre vivi dentro de casa. Ver gente e poder tomar sol é bom, apesar de eu não conseguir interagir e ficar só aqui sentado sem fazer nada. Meu pai tem me acompanhado bastante nesses compromissos, o trabalho dele como músico toma muito tempo, mas depois do acolhimento ele acabou se tornando mais presente, a gente tem conversado mais também.
Agora que já fiz o Fundamental pelo EJA, estou só esperando o ano começar pra me matricular no Ensino Médio. Fiquei muitas anos atrasado na escola e acabei voltando à sala de aula só depois que fui para o abrigo. Quero me formar e fazer outras coisas, não faculdade, mas cursos que eu acho legais. Tipo os da SAGA, de computação, mas não sei se dá pelo valor da mensalidade. Vou juntar uma grana e quem sabe, né?! Eu gostaria de trabalhar com isso.
Também curto coisas que todo mundo tem medo de fazer… Aqueles experimentos perigosos. O que mais gosto é o da faca de 1000°! Precisa esquentar ela até ficar vermelha e depois dá pra atravessar qualquer coisa, até celular. Dá pra fritar um ovo nela! É muito legal. Passo muito tempo vendo vídeos deste tipo no Youtube. É o que mais faço: jogar videogame e ver vídeos de experimentos.
Hoje, a dinâmica da minha casa mudou. Tem a cuidadora que passei a ter graças à entrada do SAICA na minha vida, e tem meu pai, que está mais próximo. Mas em casa somos só eu e a minha mãe mesmo. Não sei como vai ser quando eu tiver a cadeira motorizada, acho que será uma preocupação pra ela me ver sair. Mas ela tem que me dar liberdade, né?! Eu já sou um adulto.