Dias de independência Depois da mãe perder sua guarda pelo uso de drogas, Willians passou nove anos em abrigos porque seu avô não foi informado que podia adotá-lo. Hoje aos 18, trabalha, mora com um primo e quer voltar a estudar para se tornar engenheiro

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Willians Bessa

O garoto que tinha medo de sair sozinho e se perder, hoje brinca de escorregar no corrimão das escadas rolantes do metrô, tem grande parte das estações decoradas na cabeça e, mesmo entretido com o joguinho de celular, fica atento a todos os avisos vindos da cabine de operações da companhia de transporte. Se sente em casa!

Willians Bessa, de 18 anos, trabalha em uma rede de Fast Food, mora com um primo mais velho e se orgulha de poder levar o irmão caçula no cinema, poder gastar com jogos de videogame que tanto gosta e planejar um grande sonho que, segundo ele, envolve muito dinheiro.

O acolhimento entrou na vida do adolescente aos nove anos de idade, sua mãe tinha mais oito filhos, mas perdeu a guarda das crianças por ser dependente química. O parente mais próximo era o avô, mas por ser mágico e trabalhar em circo, sempre viajando, não pôde pegar a guarda dos netos. Willians foi para o abrigo Beija Flor, em São Paulo, com mais três irmãos, dois deles foram adotados e levados para a Itália. Nunca mais se viram. O outro irmão, hoje com 15 anos, finalmente teve a tutela dada ao avô que atualmente consegue abraçar essa responsabilidade.

Willians é portador de uma deficiência intelectual de grau leve. Semialfabetizado, está no segundo ano do Ensino Médio e leva uma vida superindependente. “De boa”, como gosta de dizer que é a sua rotina.
Depoimento à Monise Cardoso. Fotos por Christian Braga.

A primeira vez que peguei metrô sozinho para ir do abrigo até o curso sobre mercado de trabalho que eu fazia no Cidade Jardim, um bairro da capital paulista, foi bom e ruim. Bom, porque deu tudo certo, eu não me perdi e fiquei orgulhoso de conseguir chegar até lá e depois voltar. E foi um pouco ruim porque deu medo de ficar perdido e de não conseguirem mais me achar.

Hoje não sinto mais medo de andar pela cidade, eu precisei aprender porque no abrigo não tinha quem levasse, tive que me virar. Eu ia até a estação de trem Brás, embarcava sentido Luz, fazia transferência para a Linha Amarela, descia em Pinheiros, baldiava para a linha verde e desembarcava na estão Cidade Jardim. É, era isso! Hoje eu ando mais na linha vermelha, mas consigo ir para todo lugar. Pelo menos nunca me perdi, né?!

Não tenho tantas lembranças de como eram as coisas antes do abrigo. Eu morava com a minha mãe, meu avô e mais três irmãos. Lembro que minha mãe cozinhava pra gente, era bem bom. Depois que a situação dela com as drogas piorou, ela perdeu nossa guarda. Meu avô não pôde cuidar de nós por causa da profissão de mágico de circo que o obrigava a viver viajando. Então eu e meus irmãos fomos para o SAICA Beija Flor. Dois deles logo foram adotados por uma família e hoje moram na Itália, nunca mais nos vimos. Já o Wesley continuou no abrigo comigo.

Depois da ida para o SAICA eu nunca mais vi minha mãe, ela ficou proibida de visitar a gente. Ela era bonita, era carinhosa comigo. Mas hoje eu não tenho curiosidade de encontrar com ela e nem de saber como está. É normal pra mim não ter mãe, me acostumei. Pai então nem se fala, eu nunca vi o meu.

Quando eu saí do abrigo foi estranho. Estava acostumado, tinha os meus amigos, as pessoas cuidavam de mim. Eu fazia acompanhamento com psicólogo e podia desabafar. E também foi difícil deixar meu irmão, ele queria vir junto. A educadora Fabiana ajudava o Wesley a fazer as contas de quanto tempo faltava pra ele sair do acolhimento também.

A sorte é que graças à orientação do Travessia meu avô descobriu que poderia pegar a guarda dele e tirá-lo do abrigo antes dos 18 anos. Então, hoje, eles moram juntos. Aos finais de semana nós sempre nos vemos, eu o busco e a gente vai ao cinema.

Eu moro com o meu primo em um bairro da região leste de São Paulo, como a casa dele é mais próxima do meu trabalho, é o melhor pra mim. Eu trampo em uma rede de fast food. Meu horário de entrada é às 9h, mas eu sempre chego uma hora antes para não correr o risco de atrasar. Faço de tudo: limpeza, faço sorvete, frito batata, atendo as pessoas.

Uma vez na semana ao em vez de trabalhar, eu faço um curso pela APAE. Eu já aprendi bastante coisa. Sabia que tem um copo pra cada tipo de bebida? O de vinho branco é mais fino e comprido, o de água é redondinho. Existem vários tipos de talheres também, o garfo que tem um dente mais pontudo é de peixe. Ah, e fazer “Tim Tim” com as taças é falta de educação.

No Travessia eu aprendi sobre educação financeira e mercado de trabalho nas oficinas que eles oferecem. A Fabiana também conversa bastante comigo sobre dinheiro, ela me ensinou que é importante economizar para poder comprar coisas grandes, dar entrada num carro, numa casa, tirar carta, essas coisas. Eu já comprei um videogame com as minhas economias! Ela diz que a escola também é importante, né?! Eu sei. Eu parei de estudar, preciso voltar para terminar o segundo ano do Ensino Médio. Mas dá mó preguiça de ir fazer a matrícula, a escola não tem mais graça. Eu não tenho vontade de fazer as lições. E também desanima saber que o professor vai me passar de qualquer jeito. Mas eu vou completar.

Moramos apenas eu e meu primo, ele tem 20 anos. Alguns dias do mês a filhinha dele fica com a gente, ela é bebê. Tentamos nos dividir para fazer as tarefas em casa, mas acabamos não fazendo nada. Fica aquela bagunça. Ninguém cozinha também, comemos bastante na rua. Ah, dinheiro serve pra isso, né?!

No tempo que passo em casa fico jogando videogame, gosto daqueles jogos que dão uma missão pra resolver. O melhor é o que tem que matar os zumbis! Adoro as séries de terror e de ação da Netflix também. E sou bem noveleiro! O pouco que saio é para buscar meu irmão ou ir ao abrigo ver os amigos que ainda moram lá.

É muito bom hoje ter mais contato com a minha família, meu avô, minhas tias e primos. Ser independente, ter um trabalho. Hoje eu consigo sonhar mais. De repente eu posso ser engenheiro.

Como eu não tenho planos de casar tão cedo, também planejo morar sozinho mais pra frente. E eu tenho um grande sonho que não posso contar qual é, mas tem a ver com dinheiro. Está longe de realizar, eu vou precisar trabalhar bastante, mas estou animado. Não vou desistir.

Fabiana Magalhães Educadora social Fundação Projeto Travessia

“O momento mais marcante do Âncora pra mim foi quando o Wesley, irmão do Williams, me pediu para ajudá-lo a contar quanto tempo ele ficaria no abrigo ainda depois que o irmão saiu.”